Alice era uma jovem de quase 23 anos, faria aniversário nos próximos 2 meses.
Era escrava do dedicada ao trabalho, tinha senso de dono e acreditava que, agora que terminou a faculdade, finalmente seria bem-sucedida na vida.
Esse primeiro trabalho foi conquistado por uma indicação de um colega que estava saindo da empresa e tinha a missão de colocar alguém no lugar.
Bingo! Alice, desempregada e recém-formada, era a opção certa.
Nos primeiros meses de trabalho, ela destilava paixão e desempenho.
Propunha projetos, tinha ideias de melhorias, era proativa, vivia de prontidão… Era sempre elogiada.
Um ano se passou.
Alice se via insatisfeita por nunca ser ouvida, decidiu mudar os ares com um novo job.
Encontrou um que era sua cara, onde poderia ser criativa e realmente mostrar todo o seu potencial como profissional de marketing, além dos jargões em inglês.
Agora, sim, seria bem-sucedida.
Propunha projetos, tinha ideias de melhorias, era proativa, vivia de prontidão… Era sempre elogiada.
Dois anos se passaram.
Conseguiu um trabalho diferente e onde ganhava mais. Finalmente teria mais folga nas finanças. E agora, sim, ela seria bem-sucedida.
Um ano depois, ela se via cada vez mais dedicada à vida profissional.
Vivia para o trabalho, não tinha tempo para as amigas. Até saiu com uns contatinhos, mas nada vingou.
“Estou focando em mim, correndo atrás da minha independência, da minha felicidade”, dizia para si com frequência.
No auge dos seus 29 anos, se pegava pensando como as pessoas conseguiam ter amigos, ter tempo pra viajar, sustentar um relacionamento, ligar pra mãe…
“Quando foi mesmo que liguei pra minha mãe? Ah! Disse que iria ligar na semana passada. Ando sem tempo, foda! Mas amanhã eu ligo. Ela deve estar bem” (dois meses depois, disse a mesma coisa).
Já fazia algumas semanas que evitava pensar sobre sua vida. Então, se atolava de trabalho, pois essa era sua grande chance de ser feliz e bem-sucedida.
Numa noite qualquer, em que se sentia exaurida, ali na sala de casa, deitada em seu sofá cinza confortável e olhando para o teto, alguns pensamentos haviam finalmente perfurado a parede de concreto e, no instante em que entraram, inundaram todo o lugar.
Tudo aconteceu muito rápido, e o rompimento da barragem a fez soluçar, tremer, ficar gelada e curvada em posição de um feto que acabou de sair da placenta.
Ficou ali sem saber muito bem como reagir a todas aquelas emoções.
Ela era bem-sucedida? Por que sempre tinha algo faltando? Por que havia um buraco em seu peito?
Ela amava a solidão, mas se sentia solitária.
Ficou ali, parada, enquanto uma correnteza jorrava dos seus olhos.
Se lembrou de vários momentos da sua infância.
Dos brinquedos improvisados, das historinhas que inventava, dos personagens que criava, do quanto ela via beleza nas flores, no movimento das asas do beija-flor que visitava o quintal da sua casa quase todos os dias…
A vida era bela na infância. Havia ali… cores.
Como ela passou do arco-íris para um muro cinza em poucos anos de vida?
Como a primavera de repente se tornou um inverno gelado e triste?
Quando foi que uma flor deixou de ser uma flor?
“Não deixou. Eu deixei", pensou.
Foi se levantando lentamente, com aqueles olhos vermelhos, o rosto já muito inchado. Se sentou no sofá, respirou fundo, enxugou o rosto e foi ao banheiro fazer xixi.
A mente borbulhava. Podia-se ver quase fumaças saindo dos ouvidos.
Ao lavar as mãos, cruzou o olhar com seu reflexo no espelho. Se fixou naquela imagem. Não sabia mais quem estava encarando. “Quem é você?", pensou.
Dos olhos, mais uma vez, o rio começou a correr sem parar.
Ela baixou a cabeça, saiu abrindo alguns armários procurando furiosamente seu caderno vermelho, catou uma caneta qualquer e se sentou à mesa.
Há quanto tempo não escrevia. Mal tinha coordenação motora, mas começou…
“12 de junho de 2025, 18h03
O que é felicidade? Ter o cargo X? Ganhar X por mês? Conseguir X oportunidade? Por muitos anos, achei que fossem as grandes conquistas… Não conquistei ainda tudo o que sonhei, estou longe de ter uma carreira bem-sucedida. E agora estou aqui pensando se esse sonho é realmente meu.
Minha vontade de sequer viver me diz que estive no caminho “errado” por muito tempo.
Escrevo isto hoje para registrar que nem sempre foi assim.
Esse não é um texto de alguém que “chegou lá” e percebeu do nada que há um vazio.
Tropecei nele várias vezes, mas só hoje dei de cara no chão.
Ali caída, percebi uma florzinha amarela.
Eis que me lembrei do que é a felicidade real.
Não a queda, não o buraco no peito.
O ordinário.
Aquilo que é comum, simples, normal, tediosamente humano.
Um momento com a minha avó que pode ser o último.
Uma saída para tomar sorvete com a minha irmã e que vai ficar na memória.
Uma piada que meu pai solta e que rimos ainda que ela não tenha a menor graça.
Uma risada com os amigos das coisas mais despretensiosas possíveis.
Uma enfermeira que arranca o sorriso de um paciente em sofrimento.
Uma viagem com alguém que você ama.
Uma leitura que te arrebata.
Uma mensagem que faz do coração uma pequena brasa.
Um momento estudando algo que eu goste.
Um chocolate quente.
Felicidade é um momento que mora numa casinha simples, com grama lá fora, um chá quentinho na varanda e que sai de vez em quando para me visitar.
E a capacidade inata que temos de receber essa visita é o que me faz ainda estar aqui escrevendo este texto.
Num oceano púrpura, a felicidade é o encontro entre Nemo e Dori.
As conquistas até aqui são importantes. Os ganhos financeiros. As medalhas. O pódio. O cargo. A promoção. A casa própria… E tudo o que me contaram que eu precisava para ser feliz.
Daí, você chega lá, sobe no pódio, sente a euforia de pôr aquela medalha no pescoço, de levar o troféu para casa. Mas, quando desce, percebe um buraco no peito onde nenhuma daquelas coisas vão caber, mesmo que você tente enfiar.
É duro! Acreditamos nessas histórias e não aproveitamos o processo pré-pódio, pois nossa mente enxerga apenas o que está lá na frente, no futuro; não no agora, não no momento presente.
Quando Nemo encontra Dori, eles se divertem. Se tornam amigos e vão, juntos, viver uma aventura.
Aventura essa que não tem só felicidade. Mas muitos momentos simples, normais, tediosamente humanos (peixísticos, no caso).
Escrever isso me parece um discurso idealizado, bobo, meio cretino ou utópico demais.
Parece, mas é só… humano.
A vida é mais simples do que parece.
Não é porque pintaram nosso arco-íris de cinza que vamos seguir achando que ‘o mundo é assim mesmo'. Não é.
A gente só precisa raspar a tinta, ainda que aos poucos, para brilhar os olhos, mais uma vez, com as cores que refletem nos nossos olhos.”
Pegou o caderno, fechou, soltou um suspiro. Foi se deitar.
Dali em diante, não acordaria mais. Ao menos não a mesma Alice.
Um abraço e até quinta que vem com mais uma ideia cretina,
Ket 🌻
❤️❤️❤️